“Grande parte do meu tempo é dedicado à causa social há mais de trinta anos”, essas são as palavras da bailarina e coreógrafa Dora Isabel do Araújo Andrade, a Dora Andrade. Conhecida e reconhecida por ser a fundadora e idealizadora da Edisca (Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Crianças e Adolescentes), Dora é uma mulher corajosa, ousada e intensa. Ela foge dos rótulos e surpreende com sua simplicidade, autenticidade e preocupação em ajudar ao próximo.
Cultura e Arte vieram de casa
“Eu sou uma mulher nordestina que, por conta da minha educação, sempre tive um olhar sensível à questão dos mais pobres. Minha mãe é a responsável pelo meu trabalho no campo social. O que sou hoje tem tudo a ver com a herança ética, sensível e estética que herdei de minha mãe”, afirma a bailarina.
Dora Andrade traz consigo uma visão diferenciada do que é família. Para ela, família não se limita ao vínculo genético consanguíneo. Durante sua infância e adolescência, sua casa sempre foi abrigo para pessoas que vinham de outros munícipios resolver questões de saúde ou pendências em Fortaleza.
A casa tinha saraus regados a leituras de trechos de livros ou poemas, apresentação de música e dança por artistas dos mais diversos, estes percebiam a casa como um espaço acolhedor, habitado por pessoas que eram sensíveis ao outro e ali se sentiam confortáveis para apresentar suas obras inéditas, contar suas histórias, seus desafios e claro se divertir um pouco. “Sabe, minha mãe é como uma luz, um farol que guia as pessoas, que mostra o caminho do bem, do justo, da generosidade e da beleza”, afirma Dora. Gislene Andrade, mãe de Dora, ensinou aos filhos, ainda crianças, a importância de acolher, respeitar e ajudar ao próximo.
A formação
Dora iniciou seus estudos de dança aos dez anos, quando começou a ter aulas no Theatro José de Alencar com o maitre Hugo Bianchi. Estudou também com Goretti Quintela e Helena Coeli. Com o tempo ela sentiu a necessidade de buscar mais conhecimento, de adquirir novas vivências. Em Brasília, ela teve oportunidade de conhecer diversas linguagens de dança nos cursos de longa duração que ocorriam no Teatro Nacional, em Brasília. Quem os organizava era a maitre Gisèle Santoro. Esses momentos, para além da oportunidade de ter aulas de alta qualidade com profissionais internacionais oportunizava, também, o contato com bailarinos de todas as regiões do país e da América Latina. Dora estudou também dança clássica em Curitiba, na escola do Teatro Guairá, e dança contemporânea, com Paulo Boarque e Eva Shoo. Estudou nos Estados Unidos, em Mineápolis, e em Paris, centros de referência em arte.
Sua primeira e única carteira de trabalho está assinada com a profissão de bailarina. Na época, poucas cidades recebiam banca para selecionar profissionais de dança, Curitiba era uma das cidades que recebiam. “Para mim foi uma grande emoção me ver reconhecida, ver a minha vocação naquele documento. Na época, ser bailarino não era exatamente uma boa referência profissional. Causava uma certa confusão mental na sociedade por conta de associações indevidas. Quando fui estudar fora do país pela primeira vez, por exemplo, em qualquer roda de conversa em que mencionava ser bailarina, não dava outra, invariavelmente me perguntavam se eu dançava lambada ou forró ou samba ou outros estilos de dança não acadêmica”, explica.
Dora montou sua primeira escola de dança na cidade de Quixadá aos 16 anos. Também trabalhou em Sobral por nove anos. Já em Fortaleza, no final da década de 1980, o grupo de dança comandado por ela já recebia diversos prêmios, inclusive reconhecimento internacional. Esse mesmo grupo se comprometeu a dar aulas de dança para 50 crianças do morro Santa Terezinha com o apoio do Governo do Estado do Ceará, assim conseguiriam manter as atividades do grupo de dança. Ela ainda não sabia, mas, naquele momento estava sendo plantada a semente que se tornaria a Edisca.
Dora, pessoa física
Antes de arregaçar as mangas e dar o pontapé inicial para o surgimento da Edisca, Dora Andrade já tinha trabalhado com pessoas em circunstância de vulnerabilidade de forma voluntária e profissional, só que de modo pontual. Em uma das ocasiões ela atendia filhos de pessoas portadoras de hanseníase, em um outro trabalho contribuiu com uma organização francesa, dando aulas para meninas que viviam em situação de rua. Aos fins de semana, auxiliava sua mãe em um asilo de idosos.
“Essas vivências, de alguma forma, estavam me preparando para o que viria pela frente. Iniciamos o trabalho social dando aulas de dança para crianças e adolescentes advindos das periferias mais complexas de Fortaleza. Eu não sabia se daria certo, mas, era o que eu sabia fazer melhor e era certamente melhor do que ficar de braços cruzados diante do padecimento do meu povo”, explana.
A maternidade não foi algo planejado para Dora. O passar dos anos e o amadurecimento como pessoa despertou esse desejo. Dora é mãe de um menino de 16 anos e de uma moça de 24 anos. Ambos chegaram em sua vida com apenas dois dias de nascidos. Sem enxoval, sem experiência, mas, com muito amor, ela provou, mais uma vez, que o sentimento materno é soberano e que, filhos são todos aqueles que cuidamos, educamos e amamos, independente da forma como chegaram em nossas vidas.
“Eu fui mãe solteira de duas crianças que chegaram para mim com dois dias de nascidas. Eu não tive tempo para me preparar. Passei por momentos duros, de provações, mas foram momentos de grandes aprendizados, hoje me sinto mais forte e afortunada pelo imenso presente que a vida me reservou, meus filhos”. Dora acredita que os momentos de dificuldade servem de aprendizado e demonstra um sentimento absoluto de gratidão por ter conseguido atravessar os caminhos com dignidade, como ela mesma costuma falar: “É muito bom lutar, mar calmo não faz bom marinheiro”.
Apesar de sua voz altiva, seus pensamentos claros, seus ideais firmes inseridos em uma luta incessante pelos mais necessitados, Dora declara que muitas vezes se sentiu fragilizada e sentiu medo. “Muitas histórias já me tiraram o chão. Muitas são as infrações de direitos que ocorrem dentro das comunidades periféricas, isso me fortalece para a luta e me faz lembrar que ainda não posso parar”, expõe.
Edisca
“Você consegue imaginar em 1991, uma mulher nordestina, cabocla, afirmando que iria mudar a vida das pessoas através da arte, usando a linguagem da dança? Imagina você se determinar a levar a arte, que era restrita a um número pequeno de pessoas, sobretudo a dança que era uma linguagem bastante burguesa, para dentro das comunidades mais complexas da cidade de Fortaleza? Parecia uma insanidade da minha parte, e pra falar a verdade nem eu sabia direito onde isso iria me levar, mas era, como já dito o que eu sabia fazer melhor”, pontua. Foi assim, um dia de cada vez e com muita resiliência que a Edisca chegou.
A Escola nasceu de uma forma muito intuitiva, tendo como fundamento as linguagens artísticas, sobretudo a dança contemporânea. O entusiasmo foi grande e o número de educandos foi crescendo, de repente já não havia mais espaço para outra atividade e Dora se dedicou totalmente ao projeto Edisca. Mas, se engana quem pensa que o objetivo da escola é o de formar bailarinos. “Nossa missão é formar cidadãos éticos, sensíveis e proativos, capazes de transformar positivamente seus entornos e suas próprias vidas, e temos como propósito contribuir para a redução da pobreza e das desigualdades inaceitáveis”, explica Dora. A Edisca busca formar cidadãos que percebam seus valores, que sejam protagonistas de suas próprias vidas e construam suas trajetórias.
Dizem que o maior e mais importante aprendizado de uma pessoa é o de fazer escolhas certas, pois o destino de qualquer criança depende basicamente de duas coisas, das oportunidades que teve e das escolhas que fez. “Nesse sentido gosto de pensar que a EDISCA, para além de ofertar oportunidades reais, contribui para que nossos educandos façam as melhores escolhas e mudem seus destinos”, esclarece.
A Escola tem muitos exemplos positivos para celebrar. São muitos os egressos que mudaram o rumo de suas vidas, que criaram uma nova história e estes não são apenas os que se tornaram odontólogos, fisioterapeutas, advogados, pedagogos… inclui os que ainda não conquistaram seus sonhos de forma plena, mas, que possuem força, determinação, dignidade e altivez para mudar o curso da história reinventando suas próprias vidas, construindo novas vias de acesso.
Um bom exemplo é Lillian França, professora de português. Formada em Letras pela Universidade Estadual do Ceará, Lillian chegou na instituição com 7 anos, permaneceu por 10 anos e hoje se percebe que ela tomou a luta para si. É completamente empolgada e envolvida com a educação popular e contribui muitíssimo na educação dos jovens educandos da EDISCA. “Por intermédio da Edisca eu fui beneficiada pelo programa de bolsas, fui estudar em uma escola particular e lá concluí os meus estudos. Retornei à Edisca e hoje sou professora efetiva, com muito orgulho e muita gratidão”, afirma a professora.
Os espetáculos
A seriedade, o compromisso e a emoção estão presentes em todos os espetáculos. Eles representam a principal janela da visibilidade institucional e retratam temas fortes, de grande impacto, com muita responsabilidade, estética e ética.
“Eu nunca tive vontade de fazer espetáculos para mero entretenimento. A arte exige verdade e cabe ao artista tratar dos temas relevantes de sua época. No meu caso optei por produzir uma arte mais engajada, obras que possam gerar reflexões diante das questões ligadas as minorias, aos oprimidos”, fundamenta a profissional.
E essa não é uma opção fácil! “Lembro como se fosse hoje, a cara dos profissionais de minha equipe quando disse que o novo espetáculo seria sobre as pessoas que habitam os lixões das grandes cidades. Ficaram perplexos, não acreditaram só faltaram sugerir internação para mim, relembra Dora.
Sobre o premiado espetáculo Jangurussu, ela rememora: “Acaba que o Jangurussu foi um divisor de águas em minha vida, um espetáculo absolutamente marcante, para produzi-lo convivi com os moradores do aterro e pude ver de perto suas dores, suas angústias e medos e isso me transformou para sempre.
Texto: Márcia Rios
Imagem: Paula Matos