Espedito Veloso de Carvalho carrega a simplicidade e a humildade no olhar. Aos 84 anos, artesão, nascido em Arneiroz, município do Estado do Ceará. É o filho mais velho de 10 irmãos e carrega como sobrenome uma titulação devido ao ofício que aprendeu com o pai, a arte de “selar”. Nem Veloso, nem Carvalho, ele é conhecido e reconhecido como Espedito Seleiro.
O pai era vaqueiro e confeccionava selas e outros equipamentos para vaqueiros, tropeiros e cangaceiros. Aos 8 anos, o menino Espedito aprendeu a dominar as ferramentas e o criativo trabalho com o couro. De lá até aqui são muitas histórias, muitas lutas, cultura e arte. Espedito Seleiro é um mestre, com destreza e aptidão. Sabe o motivo?
Apesar de ele não se reconhecer como um mestre e preferir ser chamado de artesão, profissão que lhe traz orgulho, ele é mestre, é especialista, é artista e professor. Sua habilidade e criatividade permitem uma inovação a cada peça, um significado particular e a habilidade para repassar a técnica à aqueles que desejam.
O artista explica que hoje há uma facilidade para confeccionar determinadas peças. A tinta e o couro são vendidos sem nenhuma dificuldade, mas, na época que ele aprendeu, era preciso muita dedicação. “Eu tinha que ir lá na mata, tirar a casca do anjico, para fazer o couro ficar marrom. Tinha que tirar a flor do pau ferro para o couro ficar vermelho, tinha que encontrar um lugar com muita água, que formasse lama, enterrar o couro natural e esperar três dias. Após três dias, o couro estava preto”, explica Espedito ressaltando que tudo aprendeu com o pai. “Eu aprendi a tirar o couro do animal, levar ao curtume e deixar ele pronto para o trabalho. Hoje tudo é mais fácil e mais rápido”, pondera o artista.
O Cariri cearense é o berço do artista
“Não aprendi a fazer outra coisa, só trabalhar com couro. Já são cinco gerações da minha família dedicada a esse ofício”, afirma o artesão. Começou com o bisavô, depois o avô, o pai e o filho. Espedito aprendeu ao observar o trabalho do pai.
Nova Olinda, cidade do extremo sul do Ceará é a sua casa desde 1949 e, apesar de suas peças terem rodado o Brasil e o mundo, ele nunca pensou em deixar o Cariri. A história do mestre do couro se mistura com a do munícipio e é lá que está localizado o ateliê de Espedito, a Oficina Escola Espedito Seleiro, local onde ele repassa o conhecimento e imortaliza a cultura do povo nordestino. O sucesso é tanto que se tornou parada obrigatória para quem visita a região.
Não caiu do céu
Espedito Seleiro moldou sua própria maneira de lidar com o couro e inovou ao perceber como explorar o infinito universo das cores. Ele passou a produzir as peças utilizando técnicas de tingimento. Buscou os tons na natureza e desenvolveu seu próprio estilo, baseado na história de vida dos vaqueiros, seleiros, ciganos, sertanejos… dos seus antepassados, presentes em suas saudosas lembranças de menino. Por ser o filho mais velho e ter perdido o pai muito cedo ele precisou trabalhar para ajudar no sustento e criação dos irmãos, então, desistir não poderia ser uma opção.
Na década de 1980, o artesão percebeu que não poderia ficar atrelado somente a confecção de selas e vestimentas para vaqueiro. O tempo provou que o número de vaqueiros e tropeiros se fez cada vez menor e os ciganos foram desaparecendo. Para continuar produzindo ele precisaria de novos produtos, novas formas de criar a partir do seu bem maior, o couro. Aos poucos ele foi descobrindo novas formas de produzir e surgiram vários tipos de calçados, bolsas, carteiras, objetos de decoração, roupas masculinas e femininas, vai depender da encomenda. E deu certo, ele conquistou o mercado. Primeiro por sua habilidade, criatividade e perfeccionismo, depois por seu espírito de constante inovação, que o tornou único em seu ofício.
Apesar da criação de tantos produtos diferenciados, Espedito confessa que o que ele mais gosta de fazer são as selas e roupa de couro para vaqueiro, a tradição. “Eu não posso vê um monte de couro que já penso em fazer a sela, o gibão, o chapéu, a perneira, luva e guarda-peito”, afirma.
As Alpargatas de Lampião
Uma das histórias mais curiosas contadas por Espedito se referem ao conhecido cangaceiro Lampião. Na década de 1930, o pai de Espedito, Seu Raimundo Seleiro, recebeu uma improvável encomenda em seu ateliê; um forasteiro de forma bastante assustadora, propôs uma encomenda, tratava-se de alpargatas com solado retangular; Seu Raimundo nunca tinha feito nada parecido e resolveu aceitar o trabalho para evitar problemas.
Um mês depois o forasteiro veio buscar as alpargatas. Nesse segundo encontro ele revelou sua identidade. Era um dos capangas de Lampião e o calçado era para o rei do cangaço. Na ocasião, Seu Raimundo não aceitou o pagamento por não querer contrariar Lampião. Tempos depois ele veio a receber um punhal de presente, enviado pelo rei do cangaço.
O mais interessante da história, o artesão conta com clareza, acerca do solado das alpargatas. “O solado retangular não permitia que o bando fosse seguido. Não era possível saber que direção tomavam”, explica Espedito.
Simbologia, significado e cultura nordestina
Espedito se alegra ao falar quão longe o seu trabalho chegou, mas, ele não se envaidece. Humilde e com os dois pés bem fincados no chão ele afirma não ter frequentado a escola regular e que sabe escrever o nome e fazer contas de aritmética. A sabedoria de Espedito está intrínseca e é facilmente percebida pelo seu modo de falar ao detalhar amiúde um pouco da sua rica história de vida.
Nos anos 2000 ele teve suas peças incluídas no filme “O Auto da Compadecida”, grande sucesso do diretor Guel Arraes. Já em 2005 ele criou peças para o desfile da Cavalera (verão 2006) da São Paulo Fashion Week, ocasião que lhe proporcionou grande notoriedade a nível nacional.
Em 2014 foi inaugurado o Museu do Couro em Nova Olinda. No local, o artesão reúne relíquias como a máquina de costura com brasão, herdada da sua bisavó.
Espedito recebeu o título de Mestre da Cultura Tradicional Popular do Ceará, concedido pelo Governo do Estado. O cidadão ilustre de Nova Olinda também recebeu o título de Notório Saber pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), em 2016, como também da Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2019 e foi agraciado também com o Troféu Sereia de Ouro, uma das mais importantes e emblemáticas comendas do Ceará.
Outro momento de grande alegria foi quando desfilou em um carro alegórico na Marques de Sapucaí, na Escola de Samba União da Ilha do Governador. Foi um dos homenageados com o tema “A peleja poética entre Rachel e Alencar no avarandado do céu”, do carnavalesco Severo Luzardo.
Espedito Veloso de Carvalho é daquelas pessoas que não morrem nunca. Mesmo quando o corpo cansar e a alma descansar ele permanecerá vivo em Nova Olinda, no Ceará, no Brasil e no mundo. O amor pelo lugar, o orgulho da origem sertaneja, a alegria conquistada com as coisas simples e o reconhecimento alcançado pela devoção ao trabalho, tudo isso faz dele um ser humano que envaidece e traz admiração ao povo do sertão, a todos que tiveram e ainda têm o prazer de conhecer o fascinante caminho de sua história.
Texto: Márcia Rios
Fotos: Brian Dutervil